História (informal) de uma coleção de livros sobre Einstein

Sinto-me extremamente feliz em saber que minha coleção de livros e objetos sobre o físico de origem alemã Albert Einstein (1879-1955) está agora sob os cuidados do Núcleo de Informação C&T e Biblioteca (NIB), do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), instituição científica de renome internacional.

Acredito que a coleção – entre livros de e sobre Einstein, bem como uma gama de objetos relacionados ao idealizador de teorias que mudaram a física do século passado – tenha milhares de volumes. Talvez, seja a maior da América Latina.

Gostaria de contar aqui – talvez, abusando da paciência de quem for ler este relato informal – como se deu meu interesse por Einstein, pois essa história (pelo menos, para mim) tem acasos peculiares.

Ela começa com a visita minha e da minha mãe ao apartamento de uma vizinha, a saudosa Dona Lourdinha Giantalia, no mesmo prédio em que morávamos, na rua Inglez de Souza 239, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo (SP). Em certo momento, Dona Lourdinha nos levou ao quarto do filho, Sérgio (hoje, administrador de empresas), e minha mãe notou um quadro na parede. Nele, estava estampada a cara de um senhor de cabelos brancos desgrenhados e com a língua de fora.

Minha mãe, curiosa, pergunta quem é a personagem. “Acho que foi o inventor da pílula anticoncepcional”, respondeu nossa anfitriã. Eu tinha uns oito anos de idade, mas já conhecia a função desse medicamento, cuja simples menção, à época (segunda metade da década de 1960), era tabu – principalmente, na presença de crianças.

Fiquei com aquela imagem e explicação na memória.

Vendedor de livros

Anos depois, alguém toca a campainha de meu apartamento – nós morávamos, de aluguel, no número seis; Dona Lourdinha, proprietária, no nove. Era um vendedor de livros – mais especificamente, da Enciclopédia Conhecer, da Abril Cultural. Ele entrou e, com alguma ajuda minha, conseguiu convencer minha mãe, costureira, a comprar os livros, o que a obrigou a assinar cerca de uma dúzia de notas promissórias.

A aquisição deve ter causado abalo significativo no orçamento familiar mensal – não me lembro da reação de meu pai, português, mas suponho que ele, por ser algo relacionado à educação dos filhos, não deva ter reclamado (muito). Talvez, tenha visto no ato equidade: minha irmã, Cynthia Helena, mais velha do que eu, tinha a coleção completa do Jorge Amado (1912-2001) na estante do corredor.

Eu estava nas nuvens com a enciclopédia: agora, podia folhear páginas e páginas coloridas, ao pé da máquina de costura, onde costumava ficar quando minha mãe trabalhava (às vezes, com dores na coluna amenizadas por altas doses do analgésico Beserol). Olhava cada uma atentamente. E, se interessado, lia a totalidade ou parte do verbete.

Certo dia, deparo-me, numa das páginas da Conhecer, com o tal ‘velho linguarudo’. E, para minha surpresa, ele era um físico famoso – e, no texto, não havia única palavra sobre ele ter inventado a pílula. A empatia eu-Einstein foi imediata. A partir daí, confeccionei um caderninho artesanal – pena que o perdi – em que anotava tudo que lia e ouvia sobre esse cientista.

Comprei meu primeiro livro sobre Einstein lá pelos 12 anos de idade. E aqui começa a história de minha coleção sobre ele. E não parei mais. Lia tudo que podia – algumas obras, vistas anacronicamente, eram uma porcaria.

De sebo em sebo

Cresci, fui para a graduação em física na Universidade de São Paulo – eu era aluno medíocre, pois só me interessava por história da ciência (especialmente, da física). Tornei-me professor de física e matemática (ainda como graduando) do Ensino Médio. Depois, virei jornalista de exatas, começando minha carreira no então Jornal do Cambuci (hoje, Jornal do Cambuci & Aclimação), indo depois para o hoje finado caderno Ciência, da Folha de S. Paulo. Posteriormente, ao me mudar para o Rio de Janeiro (RJ), passei a trabalhar na Ciência Hoje, revista de divulgação científica com a qual colaboro orgulhosamente até hoje na área de exatas.

E segui vasculhando cada centímetro quadrado de sebos no Brasil e no exterior. Em minhas viagens internacionais, dedicava bom tempo a essa caça. De Londres (1996-97), escrevia para duas revistas brasileiras (Superinteressante e Marie Claire), enquanto minha mulher, Alicia Ivanissevich, também jornalista de ciência (à época, editora de ciência e medicina no Jornal do Brasil), fazia seu mestrado.

Na Inglaterra, consegui aumentar substancialmente minha coleção. Na viagem de volta, os livros ocupavam mais de uma mala.

Obras raras

Quando a coleção chegou a centenas de livros, passei a buscar as obras raras. Duas delas, presentes na coleção, eu as encontrei em um sebo em frente ao Palácio do Catete, no Rio de Janeiro (RJ), onde comprei por preço irrisório a primeira edição da primeira biografia de Einstein, bem como o livro feito pela comunidade judaica de Berlim para comemorar os 50 anos de idade do Nobel de Física de 1921 – este último, com tiragem de 600 exemplares, acho. As duas obras em alemão.

A coleção tem outros volumes muito raros e grande quantidade de livros sobre história da física. Destaque para as obras sobre a relatividade geral, do início da década de 1920, publicadas logo após a comprovação histórica, em 1919, dessa teoria da gravitação.

A doação para o NIB-CBPF tem boa dose de suvenires – colegas que viajavam ao exterior, sabendo que eu era aficionado por Einstein, me traziam bonequinhos, lápis, canecas, calendários, fotos, ímãs de geladeira...

Li, acho, cada um dos livros da coleção, sempre com o hábito de fazer anotações nas margens. Por volta de 2000, recebi convite para escrever uma biografiazinha despretensiosa de Einstein, o que fiz com prazer, em linguagem bem simples, para o grande público. Hoje, Einstein – o reformulador do universo está publicado pela editora Contraponto, do Rio de Janeiro (RJ), e todos os direitos autorais da obra vão para instituições de proteção animal – vegano, milito nessa área há anos.

Repito aqui o que já escrevi: a doação de minha coleção einsteiniana foi a melhor coisa que deixei para o Brasil – moro hoje em Buenos Aires. Foi a forma de pagar a educação que o país me deu. E fico muitíssimo contente que ela esteja no CBPF, que, para mim, sempre foi uma segunda casa – minha tese de doutorado tem muito a ver com a bela história dessa instituição, cuja fundação foi um ponto de virada na ciência do Brasil e da América do Sul.

E, para finalizar, agradeço à Dona Lourdinha – que fumava uns bons maços de Hollywood sem filtro por dia, alternando cada cigarro com um golezinho de café (frio ou quente), sempre acompanhada de seu pequinês, neurótico e bravo, que latia como um louco quando Seu Nenê, o marido de minha vizinha, chegava do trabalho. E ao Sérgio, o filho, por ter pendurado em seu quarto a foto do ‘inventor da pílula anticoncepcional’.

E, claro, àquele vendedor anônimo de enciclopédias, cuja habilidade nas vendas mudou para sempre minha vida.

Cássio Leite Vieira

jornalista e historiador da física

Buenos Aires, 18/04/22

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